Montserrat (2015-2019)

Olá, sou o Daniel. Esta é a minha primeira publicação —por isso achei ajeitado falar dos inícios. Ou melhor, deixar os inícios falarem por si próprios.

Quiçá seja já lugar comum descrever a aprendizagem como o ascenso de uma alta montanha —outras alturas também valeriam, mas neste caso é uma montanha. Uma montanha que é ao tempo um país, que é ao tempo as palavras que descobrem esse país. A montanha é Montserrat, claro. O país, Catalunha. As palavras, as que vos hei de contar.

Por quatro anos morei num mundo que sempre senti estranho. Não sempre num sentido negativo, mas sempre com a distância, a cautela do convidado em casa alheia. Fiz amizades, óbvio, e boas. Habitei em pisos que quase sem querê-lo cheguei a chamar “casa”. Nadei no mar e foi quase como não ter marchado. Mas qualquer raiz que houvesse foi sempre aérea, e todo ramo medrou em direção a outro sol. Chamemos-lhe logo “saudade”, ainda que a exatidão não tem aqui negócio. Fiquem para outro momento as comparações antropológicas entre as culturas atlânticas e mediterrâneas ou as análises geracionais sobre a precariedade e as juventudes expatriadas. Não há nisto qualquer pretensão de atualidade ou de cátedra. Iluminações, apenas —as que vos valham.

Há algo na aprendizagem de uma língua que tem a ver com nascer de novo, já que, no final, aprender a falar é aprender a viver. O mundo, as cousas, na medida em que são para nós, são aprendidas. Apreendidas, mesmo, incorporadas. Eis o lugar para o tópico: na Galiza existem centos de palavras para a chuva porque é um país em que chove muito. E se não é verdade é bem achado, mas para além do banal cumpre-se aquilo de que a linguagem é a casa do ser (embora a casa do ser não seja só a linguagem). Quem nunca o percebesse é quer porque não falou ainda o suficiente, quer porque o seu mundo é o suficientemente limitado como para dispor sempre da palavra certa.

Eu quis aprender catalão por me sentir um bocado na casa. Uma casa outra, mas pelo menos uma casa na qual entrar. Eu quis aprender catalão, isto é, eu quis viver em catalão. A língua não como ferramenta, procedimento a seguir para a resolução de tal ou qual assunto. A língua como âmbito que permite que a ferramenta seja ferramenta, como abertura na qual receber aquilo que vinher e dar-lhe um sentido. A língua não um expediente sobre o mundo. A língua, a entrada ao mundo e ao mesmo tempo o seu rosto. —Acabo de chegar aqui. Acabo de nascer. As cousas ainda não me têm sentido. Tatejo.

É algo assim como a escura noite de alma, não achades? Aprender a falar, digo. Encontrar-se com o mundo. Pensai no terror de uma criança que não compreende, que nem sequer compreende que deveria compreender: formas sem medida, no máximo, vagar atrás do perfil das cousas. É algo assim como uma desorientação, na selva selvaggia e aspra e forte. A solidão mais absoluta, não poder sair de si próprio. Quereria um pedir ajuda, mas como? Não existe “querer”. Não existe “pedir”. Não existe “ajuda”. Há só o ruído. É por isso que as crianças choram. —Procuro, ainda erro, mal engatinho.

Em Barcelona nem toda a gente fala catalão. As mais das pessoas mesmo falam castelhano. Eu podia ter tentado viver numa língua que já conhecia, não fazer o esforço. Mas afinal estaria a viver o quê? Estaria a viver onde? Eu seria quem, falando noutra língua e não na própria do lugar? Eu falaria com quem? No final foi uma escolha ética. Porém, teve também a sua retribuição. Compreendi como não teria compreendido. Conheci como só conhece quem entra, não quem olha de fora das montras. Fui alguém que não esperava, e isso foi bonito —Com os anos um chega a esquecer-se de que anda, a esquecer que está andar, que ele próprio decidiu andar.

Foi em 2º de carreira. Foi então que eu andei. Levava já meses praticando, mesmo estudando e fazendo os trabalhos da faculdade em catalão. Mas foi só após esses meses que algo em mim encaixou e comecei a ver, a ver realmente. E se comecei a ver foi porque tive quem me assinalasse para onde olhar. Daquele decatei-me de que eu já estava a andar. Que se calhar às vezes pisava onde não era, que tinha o ritmo um pouco descompensado, mas que estava definitivamente a andar pelo caminho que era, que eu tinha diante de mim um caminho e não só aquelas trevas de antes. —Descobrir, apesar da conceção comum, está mais próximo do reconhecimento do que do encontro com o totalmente desconhecido. Isto é, dar-se de conta, ver algo como algo, um novo jeito de olhar.

Foi em Montserrat. Fôramos de excursão por dormirmos na aventura. Éramos as amizades da carreira, mas também éramos (somos) muito mais. Ascendemos até o cimo já com a lua a brilhar. Na manhã, Catalunha aos nossos pés envolvida em névoas. Eu ia perguntando e a realidade ia-me sendo entregada a fragmentos. “Guaita! Mira els isards a sobre aquell penyal!”, “Porteu totes les màrfegues? Saps què és, oi? Això que és com un matalàs, però mes fi.”, “Una drecera? Doncs és un camí més curt. Com li diuen en castellà? Atajo? Sí, un atajo.” —A palavra, essa revelação.

Isards. gal. camurças, também chamadas “cabras-montesas”.

O intercâmbio sempre foi recíproco. Sempre tentei fazer-lhes ver onde era que os nossos mundos tocavam, onde era que se distanciavam. Por me perceberem melhor. Por se perceberem melhor através da minha própria estranheza. —Estranhante, como um é um através do outro.

Balma. Rocha que sobressai da vertente de uma montanha, formando debaixo uma cavidade, Não achei tradução ao galego.

Nos quatro anos que estive em Barcelona, muitas outras foram as viagens, as ocasiões de tomar o pulso àquela realidade. O Cap de Creus, Girona, os Pirenéus, as respetivas casas… —são tantas as histórias que hão de ficar para outro momento. E em cada uma delas desvendava a mesma luz, mas ela era sempre nova.

Toda terra tem um latejo para quem quer escuitá-lo.

Màrfega. gal. esteira
Agulles. gal. agulhas, penedo alto e aguçado
Boira. gal. névoa

Deixa unha resposta

O teu enderezo electrónico non se publicará Os campos obrigatorios están marcados con *