Notas à Epopeia de Gilgamés

Ao contrário do que diz o próprio título, o protagonista da Epopeia de Gilgamés não é Gilgamés. Gilgamés, herói, rei mítico, fundador das muralhas de Uruque, é sim protagonista do relato contido nessa epopeia. As suas ações são descritas e os seus motivos fazem avançar a trama, mas compreender a Epopeia de Gilgamés vai além de compreender as ações e motivos de Gilgamés, pois o conteúdo da Epopeia vai para além desse relato. O assunto, aquilo que a Epopeia faz aparecer através do que diz, através do relato, é o humano.

Épico de Gilgameš, trad. Francisco Luís Parreira (Assírio & Alvim, 2019)

O protagonista da Epopeia é o humano, mas não o humano enquanto abstração, esquema geral do que o humano possa ser. Antes, aqui é desvelado um aspeto fundamental do humano, pois o que a Epopeia mostra é a humanização mesma do humano. Na longa épica, o humano —a humanidade mesma do ser humano— comparece como conquista —a um tempo histórica e mítica, a um tempo dada cada vez em cada indivíduo—, como desenvolvimento que por necessidade vai além do dado naturalmente. Como vitória, aliás: em cada verso resplandece o orgulho, a celebração de tudo aquilo que os humanos humanamente conseguiram (as altas muralhas de Uruque, o florescer dos campos, a elaboração do pão). Mas também como luita, como esforço: o humano estende-se entre a terra e o céu, tensado entre a sua propria animalidade e a sua própria divindade. Também, enfim, como tragédia: infeliz aquele que pudendo ter com os imortais não pode escapar da sua própria mortalidade.

I. A desolação— Enquidu, némese criada dos deuses para travar os agravos de Gilgamés, é lançado à existência como animal. Dele é narrada, até chegar ao enfrentamento com o rei de Uruque, a evolução da animalidade à humanidade. “Lavou as mãos a deusa Aruru, tomou depois/uma parte de argila e lançou-a às desolações./Assim nas estepes criou o audaz Enkidu,/o rebento do silêncio, por Ninurta urdido.” (Tábua I)

As desolações, a estepe, os ermos, as vastidões, uma cousa e a mesma são: os terrenos incivilizados, a natureza selvagem e indómita, o deserto enxergado do alto das muralhas da cidade. Nesta desolação nasce Enquidu, arremessado dos céus. Nesta inospitalidade se alastra com as gazelas, medrando com a manada. Nesta desolação é ainda uma besta que desbarata as armadilhas do caçador, que traz ao coração do caçador o terror da natureza não dominada.

A desolação, o êxodo, o desterro, a ostrácia; aquelas extensões, castigo supremo das civilizações antigas, apontam a este facto essencial: nenhum ser humano pode habitar fora da cidade, da comunidade, seja esta ainda clã ou já urbe dos templos, e manter-se humano, pois nesse afora não há habitar propriamente.

“2 Mira aquelas montañas, di. Deus/ converteumas nunha desolación.”

Os lobos na casa de Esaú, Lara Dopazo Ruibal (Chan da Pólvora editora, 2017)

Há as funções orgânicas, há ainda o bellum omnium contra omnes, mas de jeito nenhum há a casa, a vida estabelecida, o espaço ordenado das amplas ruas ou os santuários dos devanceiros.

É assim pois que a entrada de Enquidu no âmbito do humano equivale ao seu abandono das desolações; é assim que a entrada no âmbito das desolações equivale ao abandono do humano. O tópico reaparece ao longo da tradição, como na sua atualização por Lara Dopazo em Os lobos na casa de Esaú (Chan da Pólvora editora, 2017), recuperação moderna da passagem bíblica de Esaú: “1Esaú acaricia o cabelo do seu irmán/apertado contra os seus xeonllos. Esaú a/desherdada, a boa filla, a supervivinte do/deserto. 2″Mira aquelas montañas, di. Deus/converteumas nunha desolación. 3Mira o camiño que percorrín ata chegar/aquí. Mira os mosaicos das paredes da/túa casa, coloreados co meu propio/sangue e todas as cidades arrasadas que/deixei ao meu paso, os lugares que/morreron comigo.””

II. A cidadeA cidade é o oposto da desolação. Boa parte dos principais versos da epopeia estão dedicados a louvar a cidade de Uruque: a sua construção, as suas imensas muralhas, os seus templos magníficos. Ela é o lugar “onde os jovens se adornam com cinturões,/e todos os dias […] são dias festivos/e os tambores são percutidos sem cessar” (Tábua I), tal e como Shamhat, a prostituta, descreve a Enquidu quando o tenta convencer para lá ir, procurando domesticá-lo. Em cada detalhe vibra o orgulho da vida humana arrancada às desolações, quer para descrever as amplas ruas e as portas de lapislázuli, quer para exaltar o pão e a cerveja como os alimentos propriamente humanos, pois para a sua obtenção é preciso o trabalho organizado, a irrigação dos campos, as artes várias e o engenho que vai além do que a natureza simplesmente outorga. De facto, o processo de humanização de Enquidu é simbolizado pela aceitação do pão e da cerveja como alimentos ao prová-los junto com uns pastores. Fica primeiro estranhado: “Não comeu o pão, e olhou intrigado./[Só] do leite das criaturas/fora criado./De comer o pão,/nada sabia Enkidu;/a beber cerveja/ninguém o ensinara. (Tábua II) Depois de aprender, sacia-se deles e “Rasurou a hirsuta lavra/do seu corpo,/untou-se com óleos,/tornou-se humano.” (Tábua II)

Figura de Gilgamés do pálacio de Sargão II (Museu do Louvre). Imagem de autoria desconhecida – Jastrow (2006), Dominio público

É celebrado o humano como um pequeno deus na terra, pois donde não há ele produz, o que era um transforma noutro, aquilo que era sem ordem fica pelo seu engenho ordenado e digno de se imitar e contemplar. A cidade é então o âmbito do humano. Fora dela, apenas os animais e os deuses. O ermo, a floresta, os céus, o abismo.

O conflito que põe em marcha a epopeia é, de facto, o perigo a que a vida estabelecida se vê submetida por obra de Gilgamés. Gilgamés, em qualidade de rei de Uruque, abusa das suas prerrogativas, vindo romper a ordem da cidade. Se bem ele é criado dous terços deus e um terço humano, origem a qual justifica o seu lugar assinalado entre os mortais, é a um mesmo tempo descrito como touro bravo, pois como um touro bravo se comporta com os habitantes da cidade. Faz uso do ius primae noctis, interpondo-se seguido entre as parelhas prometidas. A esse domínio sexual adiciona ainda o furor marcial, travando briga de contínuo com os guerreiros da cidade. O seu vigor excessivo, a sua força trasbordante, causa opressão aos habitantes e ameaça a estabilidade mesma de vida comunalmente estabelecida.

III. A força— A força, o exercício do domínio, o combate, o esforço pela vitória etc., é também aqui, como em toda epopeia antiga, elemento essencial do drama. Não é, contudo, protagonista, como é sim na Ilíada. No seu fundamental A Ilíada ou o poema da força, Simone Weil estabelece a força como o assunto central desta epopeia grega: “A força que é manejada pelos homens, a força que submete os homens, a força diante da qual a carne dos homens se contrai. A alma humana aparece, no poema, continuamente modificada por suas relações com a força […] A força é aquilo que transforma quem quer que lhe seja submetido em uma coisa”. (“A Ilíada ou o poema da força”, Simone Weil, em Simone Weil: a condição operária e outros estudos sobre a opressão, Paz e Terra, 1996, trad. Alfredo Bosi).

A força de Gilgamés põe os habitantes de Uruque sob o perigo de virarem animais, pois como animais são cobertos (lá onde Gilgamés é touro, as noivas são “mansa rês”(Tábua I)). A tirania do seu impulso impede o correr adequado da vida da cidade, rompendo o seu equilíbrio, pondo em perigo a sua mesma continuidade como lar, habitação onde uns com os outros conduzirem os seus atos. A força põe em perigo aquilo mesmo que a epopeia celebra: a humanidade do humano. Submetida à força, agravada, arrastada, vexada e abatida, não pode a vida ser muito mais que vegetação ou função orgânica: a opressão penetra tudo, reduzindo a vida ao corpo, à imediatez da luita pela existência. E nessa imediateza nem o pão pode ser elaborado, pois mesmo o pão é dado na escala das estações.

Nos excessos de Gilgamés paira então a sombra “da maior desgraça que pode existir entre os homens: a destruição de uma cidade” (“A Ilíada ou o poema da força”, Simone Weil), pois a cidade é a condição de possibilidade do humano. Os perigos do humano não vêm apenas de fora, das desolações. A força mesma, a sedução do seu império, dorme no mesmo coração do humano, ameaçando com destruir tudo aquilo construído e devolvê-lo às desolações.

IV. O amor— Mas se a força é um elemento essencial do conflito, é-o também a sua contraparte, o amor. O amor no seu sentido mais amplo, em todos os seus aspetos: o amor filial e parental, o amor pelos devanceiros e os seus templos, o amor conjugal, ou mesmo o amor cívico, que enfia todos os habitantes da cidade num só novelo. Porém, o amor que sobressai de entre todos é a amizade dos amantes, aquela que agoma entre Enquidu e Gilgamés.

Amor e força são contrários, e mesmo assim por vezes dão-se juntos. Enquidu é criado como par de Gilgamés, contrapeso da sua força, mas também companheiro que reconduza essa mesma força e liberte os habitantes da cidade. O combate deles dous coloca-os num início como rivais, mas dessa rivalidade, da igualdade nas forças que os contrapõe, nasce logo a amizade que os une. Acham um no outro um igual com o qual medir-se, pois de origem divina como são ambos não têm medida comum com o resto de mortais. Reconhecem-se ao mesmo tempo oponentes e amantes, pois o seu amor é aquel dos que, através do esforço compartilhado, chegam a ser mais do que eram por si sós.

“Aquiles a curar Pátroclo ferido por uma seta”, ca. 500 a.C. (Altes Museum, Berlim). Imagem de dominio público.

Embora não haja referências explícitas das relações sexuais entre Enquidu e Gilgamés, como há sim por contra entre Enquidu e Shamhat, isto não elimina o componente sexual na relação entre eles dous. Antes, a oposição entre a relação puramente carnal entre Enquidu e Shamhat e a relação de erótica admiração entre Enquidu e Gilgamés põe de manifesto que o sexual não é o central na relação entre estes dous, senão que a sua relação tem um carácter mais elevado. O central aí é, logo, o amor no sentido mais profundo, a paixão que faz ver o invisível no visível e o eterno no perecedoiro, a força que conduz a ver no amado o rosto do divino, e por isso mismo a perseguir o divino.

V. O limite— Mas como na Ilíada, também aqui acha amor o seu final. Enquidu morre e Gilgamés chora o seu amigo. Chora o seu amigo morto, mas chora também a sua própria morte, pois na morte do amigo descobriu a mortalidade do humano. Gilgamés chora “ao percorrer as desolações:/”Morrerei: não ficarei eu, então, igual a Enkidu?”” (Tábua IX)

As tábuas finais narram a procura falida da imortalidade pelo herói, que bate as vastidões até atingir os limites do mundo. Ali acha a planta que dá a vida eterna, mas no retorno a Uruque, a planta é devorada por uma serpe num descuido de Gilgamés. Por um descuido, Gilgamés fica já mortal definitivamente.

Gilgamés não é daquela o imortal, ninguém de entre os mortais poderá já franquear a eternidade dos deuses. Porém Gilgamés é o sábio, pois ele tem adquirido o conhecimento desse limite: a mortalidade, a finitude do humano. É assim que começa a epopeia, de facto, de jeito que a descrição inicial da sabedoria de Gilgamés apenas cobra completo sentido em compreender toda a sua história até o final. “Aquele que testemunhou o abismo”, isto é, aquele que testemunhou a morte, isto é, aquele que testemunhou os limites do humano.

"Aquele que testemunhou o abismo, as fundações da terra,
experiente de caminhos, em tudo era sábio!
Gilgameš, que testemunhou o abismo, as fundações da terra,
experiente de caminhos, em tudo era sábio!
Aonde estavam os poderes, foi averiguá-los,
de cada coisa extraiu um ápice de sabedoria.
O que era secreto encarou, o oculto trouxe à luz:
resgatou a memória de antes do Dilúvio."

Tábua I, primeiros versos da epopeia
Tábua XI, conhecida como “Tábua do Dilúvio”. Tábua neo-assíria, século VII a.C. (British Museum, Londres). Imagem de domínio público.

A sondagem desse abismo é apresentada como o máximo grau de conhecimento: o conhecimento dos limites do humano. Conhecer aqui não quer dizer só constatação, antes compreensão íntima, verdadeira aceitação da tensão irresolúvel do humano: estendida a sua vida entre a terra e os céus, parecesse quere ser —poder ser— sempre algo mais do que já é, e contudo nunca cessa de se arrancar e de tornar à terra. É amarga a abertura ao infinito da consciência finita, que precisamente por conhecer o infinito se sabe finita.

Assim e tudo, a aceitação de Gilgamés do seu próprio final necessário deixa aberta a porta à sua continuidade noutro plano. Assim resplandecem os últimos versos do poema, em que Gilgamés convida o barqueiro Urshanabi a contemplarem a cidade de Uruque. Se bem ele e qualquer um é finito como indivíduo, permanece na escala do infinito o que não sendo exclusivamente de nenhum pertence a todos, isto é, a cidade. Dizemos aqui a cidade, podíamos também dizer a palavra, gravada na argila com o estilete. Podíamos dizer os templos que mantêm a conta lendária dos anos, que reiteram com cada salmo as fundações. Podíamos dizer a ação memorável, que permanece nas águas da memória coletiva como a pedra que cai, enviando trás de si onda após onda. Podíamos ainda concluir: através de cada pequena morte alguma cousa sempre permanece, “Sobe às muralhas de Uruk e vai em torno,/considera as fundações, examina a alvenaria.” (Tábua XI)

3 comentarios en «Notas à Epopeia de Gilgamés»

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