De mapas e jeitos de ver: Domingo Fontán e a criação da Galiza Moderna

Figura 1. Carta geométrica de Galicia (Pontevedra), Domingo Fontán, 1845, de Real Academia de la Historia, Wikimedia Commons. Material de domínio público.

Passados quase dous séculos desde a finalização, no ano 1834, da elaboração por parte do matemático Domingo Fontán Rodríguez (1788-1866) do primeiro mapa “moderno e rigoroso” do território galego (Barral et al., 2018 p. 7), muitas têm sido as vozes a reclamar este feito como um “fito da cartografia peninsular” (Barral et al., 2018 p. 8) e “um instrumento fundamental para planificar o desenvolvimento do país” (Rios, 2018 p.5). Não obstante, poucas têm chegado a sublinhar avondo a importância profunda desta obra científica como símbolo da entrada da Galiza na modernidade, e ainda menos, pelo que pudemos conhecer até agora, as que têm chegado a entender de maneira não banal a operação que a Carta geométrica de Galicia opera na maneira de ver o próprio território.

Achamos a faltar uma exposição crítica do significado dos adjetivos “moderno” e “científico” que sempre acompanham a apresentação do mapa, precisamente, como o primeiro mapa moderno ou “o primeiro mapa científico do país” (“Toda unha vida para debuxar Galicia”, 2018 p. 6). De facto, as análises realizadas acostumam partir do ponto de vista duma história interior da ciência, na qual o mapa de Fontán constitui, sem dúvida, um grande avanço. Mas mesmo ali onde tem sido ligado com os projetos modernizadores do seu autor, político liberal que entendia a sua obra como uma ferramenta ao serviço do desenvolvimento económico da Galiza, nenhuma fonte ao nosso dispor acerta a dizer, além do óbvio, o papel que un mapa assim pode jogar num projeto tal.

O que quer dizer que a Carta geométrica de Galicia (doravante, CGG) seja o primeiro mapa moderno e científico do nosso país, e que relação tem isso com a maneira em que este território é representado? Que classe de efeitos tem este mapa na maneira de o ver para que “faça visível o rosto do país”, tal como teria dito Otero Pedrayo, quem, no seu romance Arredor de si, o utiliza para simbolizar o surgimento duma consciência de país na intelectualidade galeguista de princípios do século XX? (Hooper, 2011 pp. 10-12)

O objetivo aqui é ver em que medida é possível dar resposta a estas perguntas.


Figura 2. Mapa geográfico del Reyno de Galicia, Tomás López, 1784, de Biblioteca Nacional de Portugal, Wikimedia Commons. Material de domínio público.

1. O mapa como exemplo dos avanços na disciplina cartográfica

Começaremos pela análise internalista da importância da CGG, do ponto de vista da própria história da disciplina cartográfica. A CGG será logo considerada em primeiro lugar como documento histórico que exemplifica a aplicação à representação do território das técnicas cartográficas desenvolvidas durante o século XVIII e começos do século XIX.

Se observarmos os precedentes imediatos, como o Mapa geográfico del Reyno de Galicia, elaborado pelo cartógrafo Tomás López no ano 1784 (figura 2), de seguida percebemos o salto adiante que supõe a CGG (figuras 1, 3-7) no que diz respeito à precisão na representação do relevo e os contornos do país. Nem falemos já se o compararmos com outras cartas mais antigas. E é que até aquele momento, “os avanços científico-técnicos do século XVIII e começos no XIX não se deixaram sentir na cartografia espanhola peninsular.” (Barral et al., 2018 p. 24). Isto é, com a exceção do Atlas marítimo de España (1789), de Vicente Tofiño de San Miguel, o qual, não obstante, se limita aos territórios costeiros, dada a sua função eminentemente naútica. Respeito da cartografia propriamente do território, esta “ficara em mãos de cartógrafos de deficiente método.” (Barral et al., 2018 p. 25)

Figura 3. Carta geométrica de Galicia (Ferrol), Domingo Fontán, 1845, de Real Academia de la Historia,
Wikimedia Commons. Material de domínio público.

Certo é que com anterioridade houvera intenções de aplicar o método geodésico de triangulação para realizar um “mapa geral de Espanha”, mas estas nunca chegárom a ver a luz (Barral et al., 2018 p. 25). Em consequência, a CGG de Fontán é a primeira aplicação, nem só ao território galego, mas a todo o território peninsular do Estado Espanhol, dos métodos matemáticos de triangulação e as ferramentas mais avançadas da altura, que dariam uma representação tão fiel do território galego quanto o permitia a vanguarda científica do momento.

“Graças ao caminho que abriu o seu mestre Xosé Rodríguez, o Matemático de Bermês, o geógrafo da Porta do Conde dispunha do melhor material e os melhores conhecimentos que havia naquele tempo. A partir das ensinanças de Rodríguez, Fontán lera as obras dos expertos de referência da época, como Delambre, Laplace ou Legendre. E dispunha das ferramentas mais acaídas aque havia para levar adiante a Carta, graças às viagens realizadas por Rodríguez a Paris e ao próprio esforço de Fontán.” (“Así se fixo a Carta Xeométrica”, 2018 p. 19)

Figura 4. Carta geométrica de Galicia (Mondoñedo), Domingo Fontán, 1845, de Real Academia de la Historia, Wikimedia Commons. Material de domínio público.

Tal fidelidade da representação resultou possível graças a uma rede de triângulos estabelecida mediante observações astronómicas e medições matemáticas a partir de numerosos pontos ao redor de todo o território. Durante 17 anos recolleu-nos de jeito minucioso de dezenas de igrejas e doutros pontos elevados, registando também as curvas de nível do terreno. Este trabalho de campo é capital para perceber a inovação que supõe a CGG respeito da tradição cartográfica anterior, já que até então o usual era fazer os mapas unicamente “baseando-se noutros prévios ou parciais e também em descrições, sem fazer trabalho de campo.” (Barral et al., 2018 p. 28)

Figura 5. Carta geométrica de Galicia (Santiago), Domingo Fontán, 1845, de Real Academia de la Historia, Wikimedia Commons. Material de domínio público.

A exatidão resultante desta minuciosade deu um mapa de escala 1:100.000, o qual tem um grau de erro ínfimo comparado com as medidas satelitais atuais.

“Se você quiger comprovar o valor científico da Carta Geométrica de Galicia, há um jeito muito singelo de o ver. No visor geográfico da Junta da Galiza, umas das radiografias mais exaustivas que existem do território, é possível ver como os sistemas de informação geográfica fôrom melhorando com o passo do tempo e a melhora da tecnologia: o voo americano de 1957, as últimas versões do Plan Nacional de Ortofotografía Aérea (PNOA) etc. E também é possível contemplar com esta aplicação o mapa de Domingo Fontán. Quase 200 anos depois, quando dispomos duma tecnologia que era fição científica no tempo em que viveu Fontán, é possível superpor a sua Carta Geométrica sobre o território com uma margem de erro ínfima.” (“Así se fixo a Carta Xeométrica”, 2018, p. 19)

Adicionalmente, a escolha desta escala para a CGG, que muitos mapas oficiais de muitos outros países adoptariam no futuro, supujo a introdução do sistema métrico decimal à cartografia, solucionando os problemas de conversão entre medidas tradicionais, que até 19 de julho de 1848 não seriam unificadas por lei sob o sistema científico universal. (Barral et al, 2018, pp. 26-28)

“[A] obra cartogràfica de Fontán supõe a introdução e desenvolvimento entre os cartógrafos espanhois não náuticos de técnicas e métodos que conduzirão desde então a cartografia pela via do cientifismo. O mapa de Fontán situará a Galiza por muitos anos como o território com melhor representação cartográfica de Espanha, só comparável a algumas regiões europeias. (Barral et al., 2018, p. 28)

Figura 6. Carta geométrica de Galicia (Coruña y Betanzos), Domingo Fontán, 1845, de Real Academia de la Historia, Wikimedia Commons. Material de domínio público.

2. O mapa como olhada moderna sobre o território

Que a CGG constitui um grande pulo respeito de todas as representações cartográficas anteriores da Galiza resulta evidente. Mas além de argumentos do ponto de vista cartográfico, qualquer indivíduo médio das nossas sociedades modernas no-lo confirmaria: apenas é preciso olhar o mapa de Fontán —se um quiger, comparando-o com outros mapas anteriores— para perceber que, se bem um bocado velho, adequa-se à ideia que temos daquilo que constitui um bom mapa: uma representação física do território que se ajusta à realidade de maneira exata. Assim é que se expressam a maior parte dos autores até aqui citados: é um mapa científico e moderno, o primeiro mapa científico e moderno, exato, ajustado, realista etc.

O problema radica em que, posto que parece evidente que a CGG é uma representação cartográfica realista da Galiza, ninguém se detém a pensar o que é que isso quer dizer exatamente. O problema é que esta carta cartográfica está fundamentada numa olhada moderna sobre o território que é já a nossa olhada em tanto que indivíduos modernos. Os seus supostos sobre o que é uma representação científica da realidade e o suposto de que a representação científica é a representação realista e objetiva da realidade são supostos que partilhamos e que habitamos de jeito quotidiano. Precisamente por isso, porque têm a evidência quotidiana do nosso jeito de ser no mundo, o qual já partilhamos como consenso subjazente a todo dissenso, termo-los de justificar pareceria absurdo e desnecessário num primeiro momento. Então, a tentativa de convencer alguém que não acabasse de concordar cobra a forma da pergunta incrédula “Não o vês, ou?”, como se o único que figesse falta fosse que acabasse de olhar bem para que lhe fosse evidente. E em certa medida, isto não é totalmente falso, pois a perspetiva moderna e científica da realidade é uma certa maneira de olhar, e a CGG é uma das suas cristalizações.

Figura 7. Carta geométrica de Galicia (Lugo), Domingo Fontán, 1845, de Real Academia de la Historia, Wikimedia Commons. Material de domínio público.

Vejamos o que esconde o evidente e explicitemos esta olhada moderna. Fá-lo-emos através da análise da CGG, para assim explicar que o seu pretendido mostrar a realidade objetiva não deixa de ser um caso de “mostrar como”, ou o que é o mesmo, que a representação científica da realidade não é uma mera representação incondicionada e absoluta do objeto —a representação—, senão que, em tanto que representação, é sempre uma exposição parcial do objeto, o qual é figurado sob determinados aspectos e condições. De facto, a objetividade da representação do objeto, a apresentação clara, distinta e exaustiva dos seus traços e detalhes, é uma destas condições, o fruto duma operação redutora que é o alicerce implícito próprio da olhada científica.

Chega com comparar os mapas anteriores (figuras 1-7) com um mapa-múndi pré-moderno (figura 8) para constatar que o relevante é uma função da vontade, isto é, que uma boa representação da realidade depende dos objetivos perseguidos nessa mesma representação. Neste mapa-múndi do século XIII, custodiado na catedral de Hereford, na Inglaterra, as terras do mundo conhecido não figuram em qualidade de corpos físicos a medir matematicamente, antes bem como uma rede de locais de especial relevância religiosa ou histórica para a cultura do momento. Eis as Torres de Hércules na parte inferior esquerda. Eis, ascendendo pelo lado esquerdo, sob umas figuras zoomorfas, a Galiza da altura, contendo Compostela e Padrão. Eis, na mesma altura, no lado direito, as altas torres de Paris. Pelo meio, rios, cordilheiras, bestas, vilas —existentes ou sonhadas.

Figura 8. Mapa-múndi de Hereford (seção da Península Ibérica), c. 1300, Wikimedia Commons. Material de domínio público.

Se na CCG a realidade comparece como uma série de diferenças de altura na crosta terrestre, no mapa de Hereford a realidade comparece como o âmbito do acontecimento, como mundo fabulado e dotado de significado, o qual aparece distribuido de maneira diferencial ao redor dum centro, Jerusalém. É precisamente o carácter não matematizável desta diferença de significado um dos principais fatores que poderia levar a concluir que este não é um bom mapa, que não é uma boa representação da realidade. Se calhar não é. A questão é qual é o objetivo de quem afirma essa incorreção e que classe de superioridade reclama para aquela representação da realidade que sim dê por boa. A questão é, aliás, que classe de compreensão adquiriríamos sobre nós próprias e sobre o nosso jeito de compreendermos e representarmos a realidade se tomarmos este como um outro jeito histórico (portanto, particular) de fazê-lo e de habitar o mundo.

É certo que, no geral, nós não nos importamos com a existência de unicórnios nas ribeiras do Nilo, mas com as exigências técnicas colocadas pelo relevo na construção do canal de Suez ou das vias de ferro ao longo do Minho. Este importar-se, porém, não é um chamado atemporal da verdade, mas uma imposição de preocupações profundamente práticas. Perguntemos, logo, o que de humano em nós foi que perdemos ao deixarmos de nos importar com bestiários e que classe de humanidade é aquela que interroga o território com uma regra na mão.

Figura 9. Tres desenhos inspirados por um mesmo troço de papel, Mr Brabbel, 2020, reddit.

A olhada científica do território é uma certa maneira de o interpretar. Assim pois, interpretamo-lo, e vemo-lo, tal e como a interpretamos, parafraseando Wittgenstein (2017, p. 264), quem nos avisa sobre a intricada relação entre visão, intepretação e pensamento. Sirva este exemplo análogo (figura 9), no qual pode ser que o mais interessante não seja perguntar qual dos tres desenhos inspirados pelo troço de papel é uma representação mais ajustada do original, mas, antes bem, de que maneira muda a nossa maneira de ver o troço de papel em função do desenho que tomemos como referência para o interpretar.

A maneira em que a CGG plasma esta interpretação —moderna, científico-técnica— e a visão correspondente baseia-se nuns traços que a caraterizam em frente dos mapas anteriores.

Em primeiro lugar, como foi dito, procura de jeito explícito a objetividade da representação. Isto quer dizer que, idealmente, a informação relevante deve ser exprimida por meio duma linguagem que coincida perfeitamente com a realidadeos elementos e relações do primeiro devem dar conta exata de todos os elementos e relações da segunda, e mais nada. Em curto, a linguagem visual que a CGG emprega para representar o território (basicamente, manchas pretas sobre um fundo branco) deve cumprir todos os requerimentos da linguagem descrita no Tractatus wittgensteiniano e ser logo, em virtude da sua forma lógica, um espelho do mundo.

Em segundo lugar, se considerarmos qual é esta “informação relevante” que o mapa deve transmitir —um mapa é, a fim de contas, uma representação limitada a certos aspectos da realidade— estaremos a considerar o mundo, o conjunto de factos que a olhada científica considera relevantes. Em tanto que carta geométrica, pois, a CGG tem por objetivo representar o volume físico do país como corpo matemático tridimensional: a sua extensão com os seus contornos, limites e acidentes, mas também as diferenças de altura sobre o nível do mar. “Galiza” é, neste sentido, o nome dum certo corpo tridimensional medível em todos os seus pontos segundo meios matemáticos; dum corpo físico calculável e totalmente abrangível, submetido a um espaço cartesiano de pontos e coordenadas.

O trabalho de Fontán em particular, porém, não se detém no plano físico. A CGG também figura núcleos populacionais, assim como algumas porções de território sob administração portuguesa, samorana, leonesa e asturiana, embora imediatamente adjacentes. Isto estaria justificado pela sua pretensão de o mapa servir para planificar o traçado de infraestruturas e vias de comunicação, incluindo aquelas de acesso ao país. (Barral et al., 2018, p. 31). Deste jeito, a Galiza é também apresentada de jeito ainda mais explícito como um território inserido num projeto moderno de progresso técnico. A comunicação dos seus núcleos populacionais, a exploração dos recursos naturais e o seu desenvolvimento socioeconómico são desejos já contidos na própria figura exata e disponível. Como o próprio autor expressa, “Toda nação civilizada que deseje a prosperidade do seu país, deve indispensavelmente ter à vista um desenho exato deste, e a descrição geométrica das operações e métodos que servírom para formá-lo.”(Fontán, D., citado por García, 2014, p. 5).

Sirva de prova disto que “[o]s primeiros traçados de ferrocarril, nos quais el mesmo participou, fôrom feitos sobre Fontán. E depois todos os traçados de estradas —e moitas delas fôrom feitas no tempo em que a Carta tivo maior vigência, até meados do século XX— seguem os caminhos marcados por ele.” (Vázquez, 2018, pp. 10-11)

Em terceiro lugar, e de modo inseparável do anterior, a CGG apresenta a Galiza, pela primeiza vez na história, como objeto disponível para o domínio técnico. A explicitação de todos os seus elementos relevantes numa imagem unitária, captável visualmente e medida com certeza matemática, entrega à olhada científico-técnica da modernidade precisamente aquilo que ela quer e onde ela se acha máis cómoda: uma disposição calculada, analítica e uniforme do território; uma disposição clara e distinta que permete conhecer, prever e projetar grandes projetos de engenharia. A Galiza da CGG é já um território apresentado para o trabalho e a manipulação, planificável e evidente, donde fôrom desterradas a confusão, a incerteza e as bestas fantásticas que povoavam os mapas de antano.

Neste sentido, há uma produção técnica da verdade: “Galiza” cessa de ser apenas o nome duma certa comunidade ou uma certa área do mundo de limites difusos para o país comparecer através deste mapa como facto geofráfico-económico distinto, sobre o qual intervir por meio da razão técnica. É feito visível o “corpo do país” como natureza preparada para a sua exploração, onde a modernidade pode fabricar o seu projeto de habitar humano. Se “grande parte da história da ciência poderia ser descrita em termos de fazer novas cousas visíveis —ou cousas familiares visíveis duma maneira nova” (Wise, 2006, p. 75), não cabe dúvida de que, com efeito, a CGG simboliza um antes e um depois na história da ciência e da Galiza.

Figura 10. Carta geométrica de Galicia (seção da Lagoa de Antela, desaparecida na década de 1950 ao ser dessecada pelo governo franquista para criar terrenos agrícolas), Domingo Fontán, 1845, de Real Academia de la Historia, Wikimedia Commons. Material de domínio público.

3. O mapa como fundação poética do país

A CGG aparece num contexto científico em que os métodos e técnicas de representação visual estão a crescer em capacidade e importância. Pegando no exemplo paralelo da geologia, podemos concluir que o processo de consolidação científica de disciplinas como a cartografia estivo baseado em grande medida no desenvolvimento duma “linguagem visual” e uns modos de representação dos seus objetos de estudo até então inexistentes. Como explica Rudwick,

“Durante o período em que a “geologia emergiu como disciplina nova e autoconsciente com objetivos intelectuais claramente definidos e com formas institucionais bem estabelecidas, houvo também uma emergência comparável do que nomearei uma “linguagem visual” para a ciência, o qual se reflete não só numa diversidade crescente dos tipos de ilustração, mas também num grande incremento da sua quantidade total.” (1976, p. 150)

Contudo, representar cousas novas, ou representar cousas conhecidas de novas maneiras, equivale a criar cousas novas: olhadas alternativas sobre o ser constituem novos conjuntos de elementos, relações, aspectos etc. Portanto, podemos considerar o surgimento de mapas como a CGG, assim como o desenvolvimento de novas linguagens visuais das ciências no trânsito para o século XIX, nem só como formas novas de representar uma realidade existente e de transimitir um certo conhecemento sobre ela, mas como a fundação duma nova realidade antes inexistente. “Tornar cousas visíveis é fazê-las reais, ou tentá-lo. O papel da visualização na ciência, portanto, não é o da ilustração, mas o do argumento.” (Wise, 2006, p.81)

O argumento que um mapa como a CGG pode encarnar tem a forma “olhemo-lo desta maneira, joguemos este jogo de representações —é-nos melhor para estabelecermos a verdade.” Porém, o argumento não se torna explícito, já que tem o carácter performativo de toda afirmação sobre o mundo. Em apresentar uma certa realidade como existente e em dizer dela alguma cousa —neste caso, que a Galiza tem esta forma, este relevo—, está sempre a solicitar em primeiro lugar que aceitemos que esta realidade existe —que a Galiza existe como unidade geográfica— e que aceitemos uma série de crenças sobre esta realidade implícitas nesta maneira de olhá-la —que é representável objetivamente, que é analisável de maneira matemática, que está disposta para o domínio técnico etc.

Em consequência, podemos afirmar que a CGG funda a Galiza moderna, que é um dos documentos fundadores da Galiza moderna. Não apenas com o carácter simbólico de documento dum tempo —o do Ressurgimento romantista— no qual movimentos políticos e culturais de todo tipo começavam a afirmar a existência dum povo e dum território cuja mesma existência era preciso reivindicar, mas como um dos catalizadores possíveis dessa toma de consciência. Para além das questões historiográficas, assim e tudo, a obra de Fontán funda a Galiza moderna porque a representa pela primeira vez sob a olhada moderna que acábamos de descrever. E ao fazê-lo, estabelece a verdade do país: a imagem matemática e científica da sua fisonomia é o país mesmo, as condições fundamentais de qualquer consideração futura ao respeito. Pensemos que se alguém nos perguntasse o que é a Galiza, com toda probabilidade o primeiro que fariamos seria mostrar-lhe um mapa semelhante ao de Fontán.

Figura 11. Mapa pendurado na cozinha da tia. Fotografia do autor.

Esta fundação das condições de verdade é assimilável à que opera na obra de arte. Tem o carácter poético que abre o ser duma maneira nova, que oferece uma olhada e um modo de atender às cousas diferente, mantendo-se como a viva imagem de que uma olhada tal é possível e verdadeira. Neste sentido, a CGG pertence à mesma classe de objetos que o poema U…ju ju…, de Vicente Risco (figura 12) ou a escultura de Breogán, de José Cid, situada ao lado da Torre de Hércules na Corunha (figura 13) .

A CGG, pois, funda num sentido heideggeriano (Heidegger, 2015), porquanto dá as novas condições de apresentação da realidade e fundamenta a situação em que a comunidade de facto já se acha, iluminando-a e orientando-a no seu projecto histórico.

Figura 12, U…ju ju… (Poema futurista), Vicente Risco, 1920, A Nosa Terra.

Figura 13. Estátua de Breogão, José Cid, 1995, Wikimedia Commons. Material de domínio público.

Não admira, portanto, que o mapa de Fontán resultasse atrativo para os inteletuais de começos do século XX, nomeadamento o Grupo Nós, os quais se achavam, precisamente, na tesitura histórica de ter de reclamar a Galiza como um país moderno, à altura do resto de países da Europa, o atraso económico e cultural do qual lhes aparecia como obstáculo a superar. A CGG mostrava-lhes o rosto do país com o aval da exatidão científica, e ao tempo sustinha o seu projecto de modernização sobre as potencialidades do território mesmo. A admiração pela carta de que temos registo fala em favor deste carácter fundacional: ao tempo que dá conhecimento sobre o território, não se limita a isso, mas produz mudanças na autopercepção do país, dando um sentido ao próprio lugar no mundo, orientando-o no projecto histórico da modernidade.

Podemos portanto concluir que a Carta Geográfica de Galicia é muito máis do que um mapa —ou, alternativamente, que os mapas fazem muito mais do que plasmar uma cópia da realidade como se de espelhos se tratassem. Objetos como este deveríam fazer-nos reflexionar sobre as divisões categóricas que amiúde traçamos entre ciência e arte ou entre ciência e cultura; que uma se ocupa de dizer a verdade sobre o mundo, e a outra de nos entreter, formar ou fazer pensar, mas em nenhum caso de fornecer-nos de conhecemento. Tal abismo fica dissolvido em objetos como este, em que as relações entre ciência e arte desvelama sua complexidade.

Se considerarmos um mapa como um certo jeito de ver o território —esse âmbito do real—, perguntemo-nos que classe de olhadas consideramos legítimas e porquê. Consideremos tudo o que está implícito na aparentemente imediata ação de ver e de representar o visto. Consideremos, enfim, em que medida constatar o mundo —uma besta, este texto, um país— é apenas constatar aquilo que já sempre esteve ali, à nossa espera; ou, se, pelo contrário, dizer e mostrar são duas formas de produzir mundo —duas formas, quer dizer, de trazer o ser a presença dando-lhe um sentido.

Bibliografia

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  • Vázquez, E. (2018). Entrevista: Elena Vázquez. A ciencia en Galicia. Revista da Real Academia Galega de Ciencias, 37, 10-11
  • Wittgenstein, L. (2017). Investigaciones filosóficas. Madrid: Trotta
  • Wise, N. (2006). Making Visible. Isis, 97(1), pp. 75-82

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